ATIVIDADE CRIMINAL

Informativo

"A espada sem a balança é a força bruta, a balança sem a espada é a impotência do Direito"


"O fim do Direito é a paz; o meio de atingi-lo, a luta. O Direito não é uma simples idéia, é força viva. Por isso a justiça sustenta, em uma das mãos, a balança, com que pesa o Direito, enquanto na outra segura a espada, por meio da qual se defende. A espada sem a balança é a força bruta, a balança sem a espada é a impotência do Direito. Uma completa a outra. O verdadeiro Estado de Direito só pode existir quando a justiça bradir a espada com a mesma habilidade com que manipula a balança." - Rudolf von Ihering, em "A Luta pelo Direito"(Der Kampf um's Recht‎)

quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

CONDUÇÃO COERCITIVA NO INQUÉRITO POLICIAL


ARTIGO DE MINHA AUTORIA - NOV 2009

RESUMO: O presente estudo tem por objeto a abordagem da questão controversa sobre a possibilidade de condução coercitiva levada a efeito pela autoridade policial no curso do inquérito. A despeito da temática ora proposta, procurou o autor discorrer sobre os assuntos conexos como forma de esclarecer melhor, enfatizar o contexto no direito comparado e reagir com argumentos sobre a constitucionalidade e eficácia desta medida para o desempenho das atividades do delegado de polícia, e por fim, a necessidade de ser legitimada tal conduta para que suas atribuições sejam cumpridas à luz do Código de Processo Penal. Foram suscitadas as principais questões relativas ao tema e a opinião de demais estudiosos no assunto, frisando o autor sob a sua ótica de interpretação e importância do instituto levado a efeito na persecução penal. Na atual conjuntura discute-se sobre a possibilidade da autoridade policial exercer este direito assegurado pela legislação ordinária, tendo em vista a posição de que somente a autoridade judicial teria esta prerrogativa com o advento da Constituição de 1988, motivo pelo qual a questão será enfrentada. A exposição se deu de forma clara e objetiva com o intuito de servir como argumento e fonte de pesquisa para o tema. Utilizou-se de recurso de vasta pesquisa bibliográfica, jurisprudencial, artigos e sites afins, sendo levantado um material que trouxe a tona algumas correntes de posicionamento e a que deve prevalecer pelo entendimento do redator deste artigo.
Palavras-chave: Condução1. Coercitiva2. Autoridade3. Policial4. Inquérito5.

2. ESTADO CONTROLE



O Estado é uma personificação politicamente organizada que se fundamenta em três requisitos – governo, povo e território, cuja a lei máxima se canaliza em uma Constituição. Esta, então, há de ser uma lei do Estado que cuida de suas relações com outros Estados e com a própria sociedade que faz parte do elemento formalizador de sua existência.

O Estado é responsável pela organização e pelo controle social, pois detém, segundo Max Weber, o monopólio legítimo da coerção em prol do interesse público. Assim, é a única fonte do ‘direito’ a violência legítima.

O Estado moderno é uma associação de domínio com carácter institucional que tratou, com êxito, de monopolizar, dentre de um território, a violência física legítima como meio de domínio e que, para esse fim, reuniu todos os meios materias nas mãos do seu dirigente e expropriou todos os funcionários feudais que anteriormente deles dispunham por direito próprio, substituindo-os pelas suas próprias hierarquias supremas (...). (WEBER, 1979, p. 57 e 49)

Nesse contexto, ocorrendo uma infração penal, cabe ao próprio Estado, por meio dos seus órgãos de segurança pública, garantir a observância da lei. Com isso, o Estado toma para si, o interesse da sociedade e não permite que fique ao alvedrio do particular o direito de punir.
Não obstante, esse direito de punir não é ilimitado, e a Constituição Federal de 1988 tratou de limitá-lo como garantia dos desmandos que o titular deste direito poderia exercer. Estão consusbstanciados, principalmente no capítulo dos Direito e Garantias Fundamentais funcionando como verdadeiros “freios” do Estado.

Entretanto, a quem caberia esse “jus puniendi”? A Constituição Federal de 1988, ressalvou aos magistrados – órgãos do Poder Judiciário, o direito de julgar e aplicar a pena, ressalvou aos membros do Ministério Público, o direito de acusação, aos Defensores (advogados) o direito de defesa daquele a qual a ira do Estado se direciona e a Polícia Judiciária os meios para que ocorra a apuração e individualização daquele que cometeu um ílicito penal, delineando assim o sistema acusatório brasileiro dentro da persecução penal.

3. O PAPEL DA POLÍCIA

Sabe-se que a Constituição de 1988, dando especial relevância a segurança pública, reservou um capítulo exclusivo para traçar os parâmetros de sua atuação e prevê em seu artigo 144: “A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos: polícia federal, polícia ferroviária federal, polícias civis, políciais militares”.
Mas o que se entende então por Polícia? Nos ensinamentos de Tourinho Filho:

O vocábulo polícia, do grego politéia – de pólis (cidade) – significou, a princípio, o ordenamento jurídico do Estado, governo da cidade e, até mesmo, a arte de governar. Em Roma, o termo politia adquiriu um sentido todo especial, significando a ação do governo no sentido ‘de manter a ordem pública, a tranquilidade e paz interna’; posteriormente, passou a indicar ‘o próprio órgão estatal incumbido de zelar sobre a segurança dos cidadãos’. Esse o seu sentido atual. (TOURINHO FILHO, 2002, p. 58)

No campo da sociologia encontramos ainda algumas definições conforme compilação de Acácia Maria Maduro Hagen:

(Bittner, 2003, p.130): ‘A polícia nada mais é do que um mecanismo de distribuição, na sociedade, de força justificada pela situação’. (Klockars, 1985, p. 12): ‘Polícia são as instituições ou indivíduos que recebem do Estado o direito de usar, em geral, a força coercitiva em seu território’. (Muir, 1977, p.44, tradução da autora) ‘A autoridade policial consiste em uma autorização legal para coagir outros a absterem-se de usar a coerção ilegítima. A sociedade o autoriza a matar, ferir, confinar ou vitimizar de qualquer outra forma os não-policiais que iriam ilegalmente matar, ferir, confinar ou vitimizar de qualquer outra forma aqueles a quem o policial está encarregado de proteger’. (HAGEN apud, 2006, p.32 – 33)

Conclui-se, que inúmeros são os conceitos sobre polícia, que se unidirecionalizam para um conceito único: instituição estatal, incumbida na preservação da ordem pública, atuando preventivamente ou repressivamente.

4. CLASSIFICAÇÃO DAS POLÍCIAS

A doutrina brasileira costuma elencar diversas classificações para a polícia. Variam de acordo com a esfera de poder a qual é vinculada (Estadual ou Federal), exteriorização de suas atividades (ostensiva ou repressiva) e atribuições (patrulhamento preventivo urbano, rodoviário, ferroviário e aeroportuário ou atuação investigativa).

Cabe ressaltar, que a Constituição Federal ainda buscou resguardar a criação de duas polícias especiais, desvinculadas do Poder Executivo. São elas, as Polícias da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, também denominadas de Polícias Legislativas que têm atribuições específicas para desempenhar funções inclusive de polícia judiciária, conforme entendimento sumulado pelo Supremo Tribunal Federal:

Súmula 397 STF: “O poder de polícia da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, em caso de crime cometido nas suas dependências, compreende, consoante o regimento, a prisão em flagrante do acusado e a realização de inquérito policial”.

Neste diapasão, que os estudiosos costumam distinguir ainda, quanto ao seu objeto, a polícia em administrativa e judiciária. A linha dessa divisão está no momento de atuação. Se o órgão policial atua de forma precipuamente ostensivo, visando prevenir que se ocorra alguma infração penal, fazendo com que sua presença tenha um caráter preventivo, estaremos diante de uma polícia administrativa, a exemplo, da Polícia Militar.

Por outro lado, quando um órgão policial atua de forma a investigar uma infração que já tenha ocorrido, sai-se da esfera de atribuição da polícia administrativa para a polícia repressiva, a exemplo, da Polícia Judiciária.

Nesse sentido Maria Sylvia Zanella Di Pietro:

O poder de polícia que o Estado exerce pode incidir em duas áreas de atuação estatal: na administrativa e na judiciária. A principal diferença que se costuma apontar entre as duas está no caráter preventivo da polícia administrativa e no repressivo da polícia judiciária. A primeira terá por objetivo impedir as ações anti-sociais, e a segunda, punir os infratores da lei penal. (Di PIETRO, 2007, p. 105)

E ainda José dos Santos Carvalho Filho:

A polícia administrativa é atividade da Administração que se exaure em si mesma, ou seja, inicia e se completa no âmbito da função administrativa. O mesmo não ocorre com a Polícia Judiciária, que, embora seja atividade administrativa, prepara a atuação da função jurisdicional penal(...), por pretender evitar a ocorrência de comportamentos nocivos à coletividade, reveste-se a Polícia Administrativa de caráter eminentemente preventivo: pretende a Administração que o dano social sequer chegue a consumar-se. Já a Polícia Judiciária tem natureza predominantemente repressiva, eis que se destina à responsabilização penal do indivíduo. (CARVALHO FILHO, 2007, p. 73 – 74)

Ressalta-se que essa regra nem sempre é absoluta, pois existem hipóteses em que a polícia judiciária atuará de forma preventiva, ainda que indiretamente (quando estão baseadas em algum local, inibindo o cometimento de delitos), e a polícia administrativa de forma repressiva (apreendendo objetos no exercício do poder de polícia).

Salienta-se, entretanto, que jamais essas exceções podem se tornar desiderato para a polícia administrativa invadir atribuições privativas da polícia judiciária, sob pena de vício de legalidade do ato administrativo exarado e abuso de poder. A Constituição da República e o Código de Processo Penal foram expressos ao delimitar a atribuição da polícia judiciária.

5. POLÍCIA JUDICIÁRIA

A Polícia Judiciária, ou Polícia Civil como a Constituição preferiu definir, está representada no artigo 144 §4º: “A Polícia Civil deve ser dirigida por delegados de polícia de carreira, o qual incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e apuração de infrações penais, exceto as militares”.

Código de Processo Penal em seu artigo 4º: “A polícia judiciária será exercida pelas autoridades policiais no território de suas respectivas circunscrições e terá por fim a apuração das infrações penais e da sua autoria”.

Importante frisar, que no parágrafo único do artigo 4º do CPP, ressalva-se a atribuição de investigação por outras autoridades administrativas quando a lei dispor: “A competência definida neste artigo não excluirá a de autoridades administrativas, a quem por lei seja cometida a mesma função”.

Dessa ressalva podemos depreender que outros órgãos que geralmente exercem um policiamente preventivo atuem em caráter repressivo, motivo pelo qual a regra não é absoluta, por exemplo, a polícia militar investigando crime militar ocorrido dentro da própria corporação, poderá desempenhar papel de polícia judiciária militar.

Sendo assim, sempre que ocorre um ilícito penal surge a necessidade de atuação da polícia judiciária – federal ou estadual. Esta, tem o objetivo de colher todas as informações preliminares para gerar a individualização de um investigado e reunir dentro de um procedimento administrativo, denominado inquérito policial, indícios suficientes de autoria e materialidade que deflagrarão uma ação penal.

Concluído o inquérito policial este será encaminhado ao juiz que abre vista ao Ministério Público, titular da ação penal, para que ofereça a denúncia, que se recebida pelo juiz natural, dará início ao processo penal.

Nota-se então que a persecução criminal se divide em dois momentos distintos: o da investigação (exercido privativamente, porém não exclusivamente pela polícia judiciária) e da ação penal (que será provocada pelo Ministério Público nos crimes de ação penal pública incondicionada e conduzida pelo juiz). Motivo pelo qual destacamos a importância de se legitimar as atribuições das autoridades policiais em face de usurpações de suas funções por órgãos análogos e de funções distintas, constitucionalmente estabelecidos.

Citando, o renomado autor, Fernando da Costa Tourinho Filho: “Assim, a persecutio criminis apresenta dois momentos distintos: o da investigação e o da ação penal. Esta consiste no pedido de julgamento da pretensão punitiva, enquanto a primeira é atividade preparatória da ação penal, de caráter preliminar e informativo”. (TOURINHO FILHO, 2002, p. 08)

6. AUTORIDADE POLICIAL

A autoridade policial tem papel que merece destaque dentro da estrutura da Polícia Judiciária. Foi ela citada no texto constitucional “A Polícia Civil deve ser dirigida por delegados de polícia de carreira” e na legislação processual penal “A polícia judiciária será exercida pelas autoridades policiais”.

Importante frisar que hoje se confundem a idéia de autoridade policial e delegado de polícia, sendo verdadeiros sinônimos dentro do nosso ordenamento jurídico, não podendo o conceito de autoridade policial, vim desvinculado do de delegado de polícia ou ser extensivos a outras definições. Se a Constituição Federal, ressalvou que a Polícia Civil será dirigida por delegados de carreira e o Código de Processo Penal que a polícia judiciária será exercida pelas autoridades policiais, temos aqui que esta nomenclatura deve estar intimamente relacionada aos delegados de polícia, entender o contrário seria desvirtuar o próprio interesse do Poder Constituinte Originário.

Neste sentido, Julio Fabbrini Mirabete:

O conceito de “autoridade policial” tem seus limites fixados no léxico e na própria legislação processual. “Autoridade” significa poder, comando, direito e jurisdição, sendo largamente aplicada na terminologia jurídica a expressão como o “poder de comando de uma pessoa”. O “poder de jurisdição” ou “o direito que se assegura a outrem para praticar determinados atos relativos a pessoas, coisas ou atos”. É o servidor que exerce em nome próprio o poder do Estado, tomando decisões, impondo regras, dando ordens, restringindo bens jurídicos e direitos individuais, tudo nos limites da lei. Não têm esse poder, portanto, os agentes públicos que são investigadores, escrivães, policiais militares, subordinados que são às autoridades respectivas. Na legislação processual comum, aliás, só são conhecidas duas espécies de “autoridades”: a autoridade policial, que é o Delegado de Polícia, e a autoridade judiciária, que é o juiz de direito. Somente o Delegado de Polícia e não qualquer agente público investido de função preventiva ou repressiva tem, em tese, formação técnica profissional para classificar infrações penais, condição indispensável para que seja o ilícito praticado incluído ou não como infração de menor potencial ofensivo. (MIRABETE, 1997, p. 60 e 61)

E qual seria a função precipua da autoridade policial? Podemos afirmar com clareza que é a presidência do inquérito policial.

7. INQUÉRITO POLICIAL

O inquérito policial é um procedimento administrativo afeto a atuação da polícia judiciária que visa colher indícios de autoria e materialidade para carrear uma futura ação penal a ser oferecida pelo membro do parquet ou vítima nos casos de ação privada. Portanto, possui um caráter meramente informativo, destinado a fornecer ao órgão acusatório um lastro mínimo de probabilidade contra o autor do fato para que a ação penal possa ser deflagrada. É presidido pela autoridade policial, nos termos do artigo 4º do Código de Processo Penal, e tem sua função bem delineada na lei processual criminal.

Sempre que ocorre uma infração penal, gênero das espécies crime e contravenção, há necessidade de instauração do inquérito policial de forma que ocorra uma investigação pelo Estado que irá buscar os meios para que a ordem jurídica e social rompida se re-estabeleça.
No curso da investigação a autoridade policial, busca individualizar um suspeito e indiciá-lo, que nada mais é do que cientificá-lo formalmente sobre o procedimento a qual está respondendo e assegurar os meios para que comece a preparar sua defesa.

Nesta seara, já se faz importante a figura do defensor. Embora, o inquérito policial seja um procedimento peculiar com características próprias como a inquisitoriedade e sendo assim dispensável é a atuação do advogado para a legitimidade da atuação da autoridade policial, pois não estamos diante de uma instrução criminal, propriamente dita, isto não quer dizer que o indiciado não possui nenhum direito. Essa inquisitoriedade deve se dá de forma regrada, com observância a lei, aos ditames da Constituição Federal de 1988, de modo que possam existir ainda que de forma mitigada um direito de defesa, a princípio para controle da legalidade dos atos da autoridade policial.

O próprio Supremo Tribunal Federal por meio da súmula vinculante de nº 14, afirmou que é “direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão de competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa”. Atente-se, não se instituiu a ampla defesa no inquérito na sua essência constitucional, o que se buscou foi assegurar um direito do representado de ter acesso aos autos, para que o advogado exerça um controle de legalidade das ações da autoridade policial, por isso podemos classificar como um “direito de defesa” ou uma “defesa mitigada”. O inquérito continua sendo inquisitorial e nesse momento não cabe ao advogado produzir uma defesa técnica, apenas supervisionar os atos das autoridades e ir preparando a tese defensiva por meio de provas (requerendo diligências que considera imprescindíveis, colhendo informações e etc.) para o processo penal, momento adequado da produção da ampla defesa e contraditório, pilares do princípio basilar do due process of law.

Seu conceito pode ser bem delineado pelos ensinamentos dos professores Nestor Távora e Rosmar Rodrigues Alencar:

O inquérito policial vem a ser o procedimento administrativo, preliminar, presidido pelo delegado de polícia, no intuito de identificar o autor do ilícito e os elementos que atestem a sua materialidade (existência), contribuindo para a formação da opinião delitiva do titular da ação penal, ou seja, fornecendo elementos para convencer o titular da ação penal se o processo deve ou não ser deflagrado. (TÁVORA e ALENCAR, 2009, p.72)

Logo, o inquérito policial funciona como o cérebro de toda atuação da polícia judiciária. Nele são reunidos todos os elementos colhidos na investigação e através dele que se legitimam os diversos meios de atuação da polícia judiciária. Essa atuação se dá interrogando o suspeito, ouvindo o ofendido e testemunhas, acautelando objetos que possam constituir meios de provas, designando perícia para elucidação e confirmação de fatos e indícios, procedendo a ações de reconhecimento de pessoas e coisas, acareando os envolvidos, identificando e individualizando o suspeito, averiguando a vida pregressa, dentre outras ações tuteladas pelo Código de Processo Penal e leis esparsas que poderão instruir elementos suficientes para o ato de indiciamento (individualização do suspeito) e desfecho por meio do relatório.


Em suma, qual seria o seu fim? Guilherme de Souza Nucci sintetiza bem: “Sua finalidade é a investigação do crime e a descoberta do seu autor, com o fito de fornecer elementos para o titular da ação penal promovê-la em juízo, seja ele o Ministério Público, seja o particular, conforme o caso”. (NUCCI, 2008, p. 70)

8. DIREITO COMPARADO

Sistema Europeu

Ao analisarmos o inquérito criminal em países como França, Alemanha e Portugal, constituem em regra a primeira fase da persecução criminal. A figura do Ministério Público (Staatsanwaltschaft ou Ministére Public), independente de designações e composições em seus quadros (na Alemanha representam um corpo hierarquizado de magistrados que assumem a defesa dos interesses do Estado), este detém a competência da direção do inquérito criminal, atuando as forças policiais como a Krimminal Polizei ou os Officiers de Police Judiciaire como coadjuvantes das investigações.

Nota-se que as atribuições do Delegado de Polícia, são abarcadas dentro das funções do Ministério Público, motivo pelo qual a expedição de um mandado de condução coercitiva para aquele que não comparece a determinada convocação, deve ser requerido à autoridade judiciária, ou nos casos previstos, expedidos por quem preside investigação criminal quando detém atribuição para tal.

Entretanto, o que se busca mostrar, é que nestes países optou-se por um sistema distinto do brasileiro que mais se assemelha ao sistema inglês, em que a intervenção do “Crown Prosecution Service” se encontra limitada pelo poder de dar continuidade ou indeferimento aos inquéritos fruto do trabalho da polícia judiciária.

Percebe-se que a atuação da polícia judiciária em países como França, Portugal e Alemanha, somente possuem poderes para a investigação criminal quando atuam como auxiliares do Ministério Público, pois a ele cabe a condução do inquérito criminal.

No sistema inglês, as polícias que possuem funções de investigação criminal, encontram-se dotadas de funcionários especializados (assemelhadas em atribuições, as autoridades policiais brasileira) gozando de relativa independência face as autoridades judiciárias, em virtude do seu amplo domínio do inquérito criminal, que como no Brasil será destinado a formação do processo penal.

Vejamos a análise de Carlos Alberto Simões de Almeida quanto ao inquérito no sistema inglês:

O inquérito constitui a fase inicial e preparatória do processo penal. A Polícia tem nele dominante intervenção enquanto entidade que cumula as funções de recolha de todos os elementos de prova para o processo, com a responsabilidade de dedução da acusação... o Ministério Público não tem intervenção durante o inquérito, a sua decisão repousa sobre os elementos que lhe são fornecidos pela Polícia. (ALMEIDA, 2006, p.186)

Por isso, no sistema inglês admitem-se com muita propriedade a possibilidade de adoção de diversas medidas cautelares praticadas pela polícia responsável pela instrução do inquérito. Dentre estas medidas podemos citar a possibilidade de qualquer agente de polícia deter independente de mandado, uma pessoa que tenha faltado ao seu dever de comparecer, para coleta de amostras que poderão instruir as investigações. A condução forçada para o departamento policial possui previsão legal, por exemplo, no Capítulo 60, seção 63-A do “Police and Criminal Evidence Act” de 1984 PCEA

63-A (7)Any constable may arrest without a warrant a person who has failed to comply with a requirement under subsection (4) above”. “(4) Any constable may within the allowed period, require a person who is neither in police detention nor held in custody by the police on the authority of a court to attend a police station in order to have a sample taken where …(ALMEIDA, 2006, p. 196).

Nota-se que se faz necessário medidas determinada pelas autoridades policiais responsáveis pelas investigações, compelindo pessoas que tenham sido acusadas de uma infração sujeita a crime ou notificada de que virá a ser sujeita (notice of intended prosecution), pois a estas cabem a condução do inquérito criminal, caso contrário esvaziadas estaria sua atribuição para dirigir as investigações que presidem.

Sistema Norte-Americano

O sistema norte-americano pode ser visto como um enorme Estado Policial. Esta conclusão se chega na medida em que há inúmeras agências de investigação criminal, tanto em nível federal, estadual e municipal.

A investigação criminal é realizada pelos órgãos policiais, sem intervenção direta dos “prosecutors” que nada mais são do que os membros do Ministério Público em nosso ordenamento jurídico, sendo os destinatários do trabalho investigativo que terão como função a confirmação da acusação criminal em juízo. Não é da tradição dos “prosecutors” a realização de investigações criminais, motivo a qual os órgãos policiais realizam em caráter praticamente monopolístico.

A investigação policial ocorre sempre com o objetivo de identificar os possíveis envolvidos culminando com a individualização de um suspeito que se tornará o foco do trabalho policial. Uma vez desenvolvida esta investigação podem as autoridades policiais realizar diversas diligências para levantamento de dados, oitivas de suspeitos com a sua conseqüente condução coercitiva para o departamento policial sem que necessariamente seja uma prisão e para isto tenha que recorrer a um magistrado.

Quanto à legalidade deste ato, a Suprema Corte Norte-Americana já se pronunciou conforme os ensinamentos de João Gualberto Garcez Ramos:

É da essência de toda prisão a privação da liberdade de alguém. Ainda assim, segundo a Suprema Corte, nem toda privação de liberdade é uma prisão. Dito em outras palavras, alguém pode ser detido para esclarecer fatos para a autoridade policial sem que isso caracterize uma prisão; sem que indique, oficialmente, o direcionamento das investigações para sua pessoa; sem que possa se considerar titular de direitos enunciados pela 5ª, 6ª e 8ª emenda (RAMOS, 2006, p.181)

Dessa forma, em semelhança com os sistemas que incumbem à autoridade policial conduzir as investigações e nesse contexto em consonância com o Código de Processo Penal Brasileiro defende-se o entendimento ratificado pela jurisprudência majoritária no Brasil, de que o ato de condução coercitiva emanado pela autoridade policial tem total respaldo legal e constitucional, conforme abordagem a seguir.

9. CONDUÇÃO COERCITIVA NO INQUÉRITO POLICIAL

Sempre que ocorre uma infração penal se faz necessário a atuação da Polícia Judiciária. É instaurado um inquérito policial cuja autoridade policial deverá tomar algumas providências para reunir o máximo de provas possíveis para que o titular da ação penal (Ministério Público) possa oferecer uma acusação contra o autor da infração penal.

Para isso o Código de Processo Penal, assegurou algumas providências a serem tomadas pela autoridade no momento do crime, como ouvir o indiciado (art. 6º V), o ofendido (art. 6º IV) e testemunhas (art. 6º III, 12 §2º). Estas medidas são de extrema importância, visto que são os sujeitos que vivenciaram a empreitada criminosa.

Questão controversa pode surgir no tocante à recusa desses sujeitos em colaborar com a ação do Estado. Para assegurar os fins do inquérito policial, com seu caráter informativo, o legislador estipulou no Código de Processo Penal, meios que garantam que a autoridade policial colha as informações necessárias para encaminhamento do titular da ação penal (Ministério Público).

10. SUJEITOS DA CONDUÇÃO COERCITIVA PELA AUTORIDADE POLICIAL

O indiciado é o que está recebendo a imputação de ser um autor de uma prática criminosa, motivo pelo qual o inquérito policial é a primeira oportunidade de expor sua versão para que a autoridade policial faça um juízo de valor quanto ao grau de participação e sobre sua culpabilidade diante do fato investigado.

O ofendido é aquele que sofreu os danos da infração penal. Por ser um dos principais interessados em ver a ação do Estado contra o autor do fato sua oitiva é de enorme importância, já que pode fornecer elementos para confirmação da autoria e formação de materialidade. A autoridade policial deve ouvir, sempre que possível, logo após a infração penal suas declarações para que as informações colhidas sejam mais verossímil possíveis. Salienta-se ainda que em certos tipos de crimes como de natureza sexual a palavra da vítima tem enorme importância na materialidade da prova, por ser um crime geralmente praticado em locais ermos, fechados, sem a presença de testemunhas. Por fim, destaca-se a importância da autoridade policial fazer um “filtro” das declarações do ofendido, pois neste momento de fragilidade emocional pode ocorrer variações de sua versão movida por sentimento de vingança, ódio, revolta. Portanto um fato pode inclusive tomar dimensões maiores de acordo com o depoimento do ofendido.

A testemunha, parafraseando Guilherme de Souza Nucci, é a pessoa que declara ter tomado conhecimento de algo, podendo, pois, confirmar a veracidade do ocorrido, agindo sob o compromisso de estar sendo imparcial e dizendo a verdade.

Trata-se de um meio de prova de enorme relevância, pois se presume que sua atuação é sempre dotada de imparcialidade. Esta não é movida pelo sentimento de defesa nem de acusação que assolam as partes antagônicas de uma demanda (acusado e vítima). A doutrina tende a classificá-las de acordo com sua instrumentalidade. A testemunha é essencial para a formação do conjunto probatório, portanto, sempre que possível, deve a autoridade policial buscar encontrar pessoas que saibam de algo relacionado ao fato investigado.

Segundo o artigo 202 do Código de Processo Penal: “toda pessoa pode ser testemunha”. A partir desta afirmação, Manoel Messias Barbosa ressalta:

[...] toda pessoa poderá ser testemunha. Não importando a idade, sexo, nacionalidade, imperfeições físicas, estado social, condição econômica, reputação ou fama. A testemunha, quando chamada a depor, deve narrar aquilo que sabe, aquilo que percebeu por seus sentidos, sendo-lhe proibido dar opiniões e pareceres como se fora perito. A testemunha informa e não opina. (BARBOSA, 2009, p. 131)

O perito é aquela pessoa que detém determinado conhecimento específico sobre uma matéria e pode contribuir com sua opinião eminentemente técnica, sem juízo de valor, para o convencimento do magistrado diante do conjunto probatório. O Código de Processo Penal, também ressalva a possibilidade de condução coercitiva de perito nos termos do artigo 278 do referido diploma legislativo. Entendemos, neste caso tratar-se de perito não-oficial o qual não possui vínculo com a administração pública.

Diante dos sujeitos que devem ser ouvidos pela autoridade policial para buscar o esclarecimento dos fatos, muito se questiona sobre a possibilidade de conduzi-los coercitivamente para este mister.

No tocante a condução levada a efeito pela autoridade judiciária, nada se discute, diante de previsão constitucional e legal para tanto. A polêmica surge quando esta condução é levada a efeito pela autoridade policial. Poderia, portanto, o delegado de polícia conduzir coercitivamente o renitente que intimado para depor nos autos de um inquérito policial se recuse a comparecer? Entendemos perfeitamente viável, desde que não seja pessoa detentora de prerrogativa de foro, conforme entendimento delineado pelo Supremo Tribunal Federal:

Por outro lado, o Parlamentar pode ser convidado a comparecer para o interrogatório no Inquérito Policial, (podendo ajustar, com a autoridade, dia, local e hora, para tal fim - art. 221 do Código de Processo Penal), mas, se não comparecer, sua atitude é de ser interpretada como preferindo calar-se. Obviamente, nesse caso, não pode ser conduzido coercitivamente por ordem da autoridade policial, o que, na hipótese, até foi reconhecido por esta, quando, nas informações, expressamente descartou essa possibilidade. 3. Sendo assim, nem mesmo está demonstrada qualquer ameaça, a esse respeito, de sorte que, no ponto, nem pode a impetração ser considerada como preventiva. (HC 80592, Relator(a): Min. SYDNEY SANCHES, Primeira Turma, julgado em 03/04/2001, DJ 22-06-2001 PP-00023 EMENT VOL-02036-02 PP-00224)

11. CONDUÇÃO COERCITIVA COMO MODALIDADE DE PRISÃO

Forte corrente tem surgido no sentido da impossibilidade de condução coercitiva pela autoridade policial. Muitos fundamentam que no contexto constitucional atual, somente o juiz pode determinar a condução coercitiva, ainda que em sede de inquérito policial. Parte da doutrina alega que os dispositivos que permitem a condução coercitiva pela autoridade policial, não foram recepcionadas pela nova Constituição de 1988. Isto porque, o Código de Processo Penal advém de antes da nova Carta Política, nasceu em 1941. Argumentam que a condução coercitiva é modalidade de prisão.

Neste sentido, Guilherme de Souza Nucci:

Espécies de prisão processual cautelar: a) prisão temporária; b) prisão em flagrante; c) prisão preventiva; d) prisão em decorrência de pronúncia; e) prisão em decorrência de sentença condenatória recorrível; f) condução coercitiva de réu, vítima, testemunha, perito ou outra pessoa que se recuse, injustificadamente, a comparecer em juízo ou na polícia. Neste último caso, por se tratar de modalidade de prisão (quem é conduzido coercitivamente pode ser algemado e colocado em cela até que seja ouvido pela autoridade competente), somente o juiz pode decretá-la. (NUCCI, 2008, p. 576)

Para o renomado processualista, a autoridade policial jamais pode expedir mandado de condução coercitiva (modalidade de prisão), visto que nos termos do artigo 5º LXI da Constituição Federal temos: “ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definido em lei”.

Ousamos discordar com o ilustre jurista. Primeiramente, nem toda privação de liberdade é uma prisão. A prisão irá importar necessariamente em encarceramento, enquanto a condução coercitiva, por si só, jamais importará no cárcere do indivíduo.

A finalidade precípua da prisão é retirar o paciente da sociedade, para que este não continue transgredindo a ordem jurídica. Analisando a finalidade da condução coercitiva, que é apenas de fazer com que os sujeitos desta medida colaborem com a Polícia Judiciária e a Justiça, percebemos a total incompatibilidade com o objeto, necessidade, motivo da prisão. Por ter uma finalidade de segregação que a prisão somente poderá ser decretada pelo juiz competente, visto que sua aplicação é norma a ser utilizada em casos excepcionais, por isso revestida de uma série de requisitos que em nada se formalizam com a condução coercitiva.

Um ponto relevante a ser lembrado é que o próprio Supremo Tribunal Federal não compactua com a idéia de que condução coercitiva é modalidade de prisão.

Vejamos o caso das CPIs. A Constituição Federal de 1988, por meio do Poder Constituinte Originário, ressalvou a possibilidade de criação de Comissões Parlamentares de Inquérito nos termos do artigo 58 §3º: “as comissões parlamentares de inquérito, que terão poderes de investigação próprios das autoridades judiciais, além de outros previstos nos regulamentos das respectivas Casas, serão criadas pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, em conjunto ou separadamente, mediante requerimento de um terço dos seus membros, para apuração de fato determinado e por prazo certo, sendo suas conclusões, se for o caso, encaminhadas ao Ministério Público, para que promova a responsabilidade civil ou criminal dos infratores”.

O entendimento que prevalece no âmbito do Supremo Tribunal Federal é que esses poderes não são ilimitados. Eles devem obedecer aos limites traçados pela Constituição Federal de forma que não invadam a competência de outros Poderes. Portanto, a Constituição Federal ao dizer que “terão poderes próprios das autoridades judiciais”, quis dizer poderes instrutórios e de investigação.

Não estão abarcados os poderes de julgar, estes afetos precipuamente ao Poder Judiciário (respeitadas as exceções da Carta Magna). O mesmo ocorre em relação à determinação de medidas cautelares como: prisão cautelar (salvo a de flagrante), pois se às CPIs não cabe julgar, desarrazoado seria a decretação de medidas cautelares que abarquem atividades típicas do Poder Judiciário.

Estão, então, as CPIs limitadas a cláusula de reserva de jurisdição, ou seja, não podem as CPIs invadirem matéria afeta exclusivamente ao Poder Judiciário, sobre pena de violação a separação dos poderes e inconstitucionalidade do ato.

Nos ensinamentos de Paulo Gustavo Gonet Branco, na obra Curso de Direito Constitucional: “Em outros precedentes, tem-se frisado que o poder de investigação judicial que o constituinte estendeu às CPIs não se confunde com os poderes gerais de cautela de que dispõem os magistrados nos feitos judiciais. Estes não foram atribuídos às Comissões Parlamentares de Inquérito”. (MENDES, COELHO e BRANCO, 2009, p. 910).

Entretanto, é da competência das Comissões Parlamentares de Inquérito, dentre outras, a expedição de mandado de condução coercitiva para oitiva de investigados, ofendidos e testemunhas.

Neste sentido Pedro Lenza esclarece: “Dentro do conceito de poder investigatório da CPI, ela ainda tem o direito de: ouvir testemunhas, sob pena de condução coercitiva (...)”. (LENZA, 2008, p.318)

E ainda Paulo Gustavo Gonet Branco:

As testemunhas, uma vez convocadas em termos, são obrigadas a comparecer. A comissão pode, inclusive, requisitar força policial para trazê-las à sua presença (STF - HC 71039, DJ de 6-12-1996). Por isso mesmo, o STF admite, em tese, a impetração de habeas corpus contra intimação para depor em CPI, já que ‘a intimação do paciente para depor em CPI, contém em si a possibilidade de condução coercitiva da testemunha que se recuse a comparecer (STF - HC 71216, DJ de 24-6-1994). (MENDES, COELHO e BRANCO, 2009, p. 907).

Ora, a partir destas longas informações podemos concluir que se as CPIs não possuem poderes cautelares (de expedir mandado de prisão), somente instrutórios e investigatórios, e a possibilidade de condução coercitiva por estas comissões é matéria pacífica pelo Supremo Tribunal Federal, a única conclusão que podemos chegar é que a condução coercitiva não é modalidade de prisão cautelar para a Suprema Corte, posição a qual nos filiamos.

Sendo assim, não há que se falar em inconstitucionalidade das normas originárias do Código de Processo Penal que dispõem sobre a possibilidade de condução coercitiva pela autoridade policial, pois não sendo modalidade de prisão perfeitamente cabível se previsto em lei.

12. NATUREZA DA CONDUÇÃO COERCITIVA

Como já analisado, data vênia os posicionamentos em contrário, não devem prosperar as teses que afirmam que o instituto da condução coercitiva é modalidade de prisão. Qual seria então sua natureza? Em nossa opinião seria natureza de uma espécie de medida de polícia justificada legalmente.

Observando os ensinamentos de Eugênio Pacelli sobre o tema de intervenção corporal podemos aproveitar a seguinte lição aplicável a esta medida de polícia: “quando não puderem causar qualquer tipo de risco à integridade física ou psíquica da pessoa, à sua dignidade humana ou à sua capacidade de autodeterminação, poderão ser admitidas (quando previstas em lei, acrescentaríamos nós)”. (PACELLI, 2008, p. 338)

13. FUNDAMENTOS DA CONDUÇÃO COERCITIVA PELO DELEGADO

Norberto Avena justifica a medida na flagrância do delito de desobediência.

Nesse sentido a jurisprudência do TACrim-SP, AC, rel. Nélson Schiesari JUTACrim-SP 77/413: ‘Os atos administrativos apresentam, como atributos, além da presunção de legitimidade e da imperatividade, a denominada auto-executoriedade, que autoriza a própria Administração Pública a forçar o administrado recalcitrante a ele submeter-se. Não tendo havido qualquer abuso, excesso ou desvio de poder da autoridade policial, mas decisão fundada em lei, com vistas ao interesse público, o descumprimento voluntário pelo agente caracteriza o delito de desobediência. (AVENA, 2009, p. 581)
Ousamos, afirmar que não é necessária a hipótese de flagrância do crime de desobediência para justificar a condução coercitiva pela autoridade policial, pois haveria hipóteses em que não caberia esta fundamentação para conduzir o renitente a delegacia. Uma intimação não feita pessoalmente descaracteriza de imediato a circunstância flagrancial. Entendemos, então, que se trata de medida amparada pela lei que não possui força de prisão, podendo ser denominada como uma intervenção de medida de polícia. Sendo assim, ocorrendo o binômio necessidade/utilidade justificável é o ato, pois quem tem o dever legal de realizar uma atividade deve estar (ainda que implicitamente) dotado dos meios necessários a realizá-las. O ordenamento jurídico não pode exigir certos fins dos agentes públicos sem que estes estejam legalmente amparados para que o atinjam, sempre observando os limites da razoabilidade e sendo medida excepcional e imprescindível para as investigações, resultando assim como medida de exceção por resultar na privação momentânea da liberdade passível inclusive de correção do abuso por meio de habeas corpus.

14. ALTERAÇÃO LEGISLATIVA EM 2008

No ano de 2008 o legislador ordinário, reforçou mais ainda a idéia da permissibilidade de condução coercitiva pela autoridade policial. Com o advento da lei 11.690 de 9 de Junho de 2008 (DOU de 10-6-2008, em vigor 60 dias após a publicação), restou incontroversa que as normas de condução coercitiva são constitucionais e aplicáveis tanto para autoridade judicial quanto para a autoridade policial.

Ao reformular o Capítulo V – DO OFENDIDO, o legislador podendo realizar alteração legislativa para determinar que quando quis se referir à autoridade quis dizer autoridade judicial, preferiu com muita propriedade manter a redação do primitivo parágrafo único do artigo 201 do CPP, agora renumerado no §1º: “Se, intimado para esse fim, deixar de comparecer sem motivo justo, o ofendido poderá ser conduzido à presença da autoridade”.

E porque se pode afirmar com propriedade que o Poder Legislativo e Executivo entenderam como recepcionado esta norma processual? A uma, porque, todo projeto de lei passa pelo crivo da Comissão de Constituição e Justiça, que tem como uma de suas prerrogativas averiguar a constitucionalidade do projeto que será submetido à aprovação da respectiva Casa Legislativa. A duas, porque, podendo vetar o Presidente da República sempre que considerar o projeto, no todo ou em parte, inconstitucional (artigo 66 ª§1º Constituição), não optou por fazê-lo, motivo pelo qual se presume o entendimento do Poder Executivo no sentido da constitucionalidade.

Nesta sintonia, o legislador em 2008, entendendo pela recepção dos artigos que se referem à autoridade como sendo, tanto autoridade policial quanto judiciária, ratificou mais uma vez o entendimento majoritário da possibilidade de condução coercitiva pelo delegado de polícia no curso do inquérito, caso contrário alterado seria o dispositivo em tela para a possibilidade de somente o juiz realizar a condução coercitiva.

15. ASPECTO CONSTITUCIONAL

Como princípio basilar dos direitos e garantias fundamentais, está à liberdade de ir e vir. A Constituição, inclusive assegurou um remédio constitucional exclusivo para os casos em que houver lesão ou ameaça a este direito (habeas corpus). Trata-se de um dos princípios constitucionais que irão refletir-se no princípio matriz da dignidade da pessoa humana. Diversos diplomas internacionais contemplam este princípio como norma informadora dos direitos humanos, como exemplo, a Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969, também conhecido como Pacto de São José da Costa Rica que em seu artigo 7º (direito à liberdade pessoal), II dispõe: “Ninguém pode ser privado de sua liberdade física, salvo pelas causas e nas condições previamente fixadas pelas Constituições políticas dos Estados-partes ou pelas leis de acordo com elas promulgadas”.

Diante disto, temos que o direito de ir e vir, só poderá ser cerceado diante de norma legal que disponha para tanto, lembrando que sempre terá o seu limite na sua conformação com a Constituição.

A própria Constituição da República, ressalvou esta hipótese em seu artigo 5º, II prevê: “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.

O Estado então para exercer um poder de polícia sobre qualquer direito individual só poderá fazê-lo mediante lei e sempre em prol de um interesse público, ou seja, da coletividade. Deve-se, portanto, levar em conta o princípio da predominância do interesse público sobre o privado.

Quando há necessidade de conduzir alguém coercitivamente para que este colabore com a investigação ou com o processo, o Estado faz valer o seu poder de império sobre o particular.

Dessa maneira, desde que haja previsão legal para que ocorra e respeite a proporcionalidade da medida, viável será a condução coercitiva daqueles que não colaborarem com a Polícia Judiciária ou com a Justiça.
Vale salientar, que não existe direito fundamental absoluto. Neste contexto, Luiz Flávio Gomes ensina:

O princípio da legalidade que é reclamado em relação a qualquer medida restritiva de um direito fundamental, seja porque na lei está a legitimidade democrática da intervenção estatal, seja porque a lei é uma garantia de previsibilidade da atuação dos poderes públicos. A lei é uma garantia para todos, porque ela fixa os limites e as fronteiras para o exercício dos correspondentes direitos. Qualquer restrição de um direito fundamental em conseqüência, só vale se prevista em um texto jurídico. (GOMES, 2009, p. 412).

Estamos aqui diante do princípio da legalidade. Do princípio da legalidade, extraímos o da tipicidade legal que restringe todos os procedimentos da polícia à precedência da lei e à tipicidade legal. O Estado para agir, deve se valer de um instrumento legal em consonância com a Constituição Federal. A previsão constitucional advém do artigo 5º, II da Constituição da República, portanto sempre que o Estado necessita intervir na esfera privada, deve se valer de uma lei para que seja legítima esta atuação, encontrando seus limites nos próprios direitos e garantias fundamentais.

16. TIPICIDADE LEGAL

Toda medida tomada pela polícia deve se revestir de previsão legal para tanto e para isso o Código de Processo Penal ressalvou diversos dispositivos autorizando a condução coercitiva pela autoridade (art. 201§1º, 218, 260, 278 CPP).

Vejamos na análise de Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery:

A tipicidade das medidas de polícia acarreta limitação da atuação da polícia. Isto, porque, em caso de necessidade de ação policial, por exigência constitucional, diante de um particular, a polícia apenas poderá incidir na esfera do particular mediante atuação previamente fixada em lei. A atuação policial tem seus limites na Constituição e também na legislação que regulamentar sua atividade, ou seja, somente podem ser adotadas as medidas policiais legalmente permitidas e não aquelas que a autoridade policial, subjetivamente e sem respaldo legal objetivo, considerar convenientes para o deslinde de determinado caso concreto.” E continua embasando seus argumentos no constitucionalista Canotilho: “O princípio da tipicidade legal das medidas policiais indica que os atos policiais, além de, necessariamente, possuírem seu fundamento na lei, as medidas e os procedimentos devem ter seu conteúdo suficientemente definido em lei, independentemente de quais forem essas medidas: que sejam regulamentos gerais oriundos das autoridades de polícia, decisões concretas e particulares (autorização, proibições e ordens), medidas de coerção (utilização da força, emprego de armas) ou operações de vigilância (Canotilho-Moreira. Const. Anot³., coment. 272, n. VI, p. 956).
O Tribunal Constitucional Português, pelo acórdão 479/94, consagrou a aplicação dos princípios da proibição de excesso e da tipicidade da atividade policial. Nesse sentido, decidiu: ‘os fins dos poderes funcionais assim atribuídos à polícia terão de ser actuados através de medidas previstas na lei (princípio da tipicidade legal), sendo que, por força da regra de correlação existente entre os meios e os fins, as medidas de polícia não devem ser utilizadas para alem do estritamente necessário (princípio da proibição do excesso). O princípio da tipicidade legal impõe que os actos de polícia, além de terem um fundamento legal, devem traduzir-se em procedimentos individualizados e com conteúdo suficientemente definido na lei seja qual for a sua natureza (...) (Tribunal Constitucional Português, Pleno, Processo n. 208/94, rel. Cons. Monteiro Diniz., acórdão n. 479/94). (NERY, 2009. p. 606)

17. INTERPRETAÇÃO: AUTORIDADE NO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL

Outra discussão relevante a ser enfrentada é na interpretação do que vem a ser autoridade no Código de Processo Penal.

Quando quer o legislador individualizar quanto a uma ou outra autoridade específica, utiliza-se não do termo genérico (autoridade) e sim de forma mais específica (autoridade policial ou judiciária).

Nota-se, então, que quando se refere à autoridade utiliza-se de um gênero para referir-se tanto a autoridade judiciária quanto à autoridade policial. Isto porque diversos dispositivos que regulam os procedimentos judiciais aplicam-se à autoridade policial quando compatíveis, como no reconhecimento de pessoas (artigo 226 III CPP “se houver razão para recear que a pessoa chamada para o reconhecimento, por efeito de intimidação ou outra influência, não diga a verdade em face da pessoa que deve ser reconhecida, a autoridade providenciará para que esta não veja aquela”; e ainda seu parágrafo único: “o disposto no nº III deste artigo não terá aplicação na fase da instrução criminal ou em plenário de julgamento”.
Ora, se o Código de Processo Penal se refere à autoridade no inciso III do artigo 226 do CPP e depois exclui a aplicação do inciso III na fase processual, a conclusão lógica é que ao referir-se à autoridade utiliza-se de um gênero para abranger tanto autoridade policial como autoridade judiciária.

Quando a lei quer se referir exclusivamente ao magistrado, utiliza-se de palavras como: autoridade judiciária (artigo 185 CPP “o acusado que comparecer perante a autoridade judiciária, no curso do processo penal, será qualificado e interrogado na presença de seu defensor, constituído ou nomeado”) ou então juiz (artigo 217 CPP “se, regularmente intimada, a testemunha deixar de comparecer sem motivo justificado, o juiz poderá requisitar à autoridade policial a sua apresentação ou determinar seja conduzida por oficial de justiça, que poderá solicitar o auxílio da força pública).

Desta interpretação lógica podemos concluir que autoridade é gênero que comportam duas espécies no Código de Processo Penal: Delegado de Polícia e Juiz.

Por esta razão que em observância ao princípio da tipicidade legal não pode um agente ou escrivão de polícia civil expedir um mandado de condução coercitiva ao seu próprio rogo, pois a lei é clara ao determinar que esta atribuição é inerente a autoridade policial que não se confunde com os agentes da autoridade. Além disto, deve ser a autoridade responsável pelo inquérito presidido que deve assinar tal peça instrumental, sendo inviável, portanto, que uma autoridade policial de circunscrição estranha ao fato investigado atue com este mister de determinar a condução de uma pessoa por ausência de justa causa.

18. PRINCÍPIO DA INEXIGIBILIDADE DE AUTO-INCRIMINAÇÃO

Também denominado de princípio do nemo tenetur se detegere, o princípio da não incriminação assegura que ninguém pode ser obrigado a produzir prova contra si mesmo. Possui pilares de sustentação no direito ao silêncio assegurado pela Constituição da República e da presunção de inocência.

Salienta-se que este princípio não pode ser invocado pela testemunha, que tem o dever de falar a verdade (há entendimento jurisprudencial no Supremo Tribunal Federal, que este princípio pode ser invocado quando a pergunta respondida pode irradiar reflexos de auto-incriminação). Na mesma sintonia, incompatível é sua invocação pelo o ofendido, visto que este é interessado direto (ação privada) ou indireto (ação pública) na persecução penal.

Entretanto, questão controversa poderia surgir quanto à possibilidade de recusa do indiciado em comparecer a delegacia, tendo em vista que a Constituição Federal assegura que o indiciado não precisa produzir prova contra si mesmo (artigo 5º LXIII dispôs: “o preso será informado de seus direitos, entre os quais de permanecer calado, sendo-lhe assegurado a assistência da família e de advogado”). Deveria ele ir à delegacia somente para afirmar que deseja permanecer calado?

Acreditamos que sim. Primeiro, que embora o inquérito tenha sua natureza inquisitorial, não podemos fechar os olhos a situação de que a oitiva do investigado é a primeira oportunidade de defesa do mesmo. Vejamos a hipótese de pessoas que possuem nomes iguais, somente o comparecimento a delegacia com oitiva do suspeito e colheita de informações como identificação datiloscópica que no caso de um erro poderá ser sanado a tempo. Outra hipótese se justifica quando o ofendido aponta que determinado autor do fato reside no endereço X, quando na verdade reside no Y, a autoridade policial, então, procede diligências na casa de um suspeito que nenhuma ligação tem com o fato, motivo pelo qual o comparecimento a delegacia é fundamental para dirimir qualquer equívoco ocorrido durante as investigações.

Cabe ainda ressaltar que o comparecimento a delegacia é essencial para o desfecho do inquérito, ainda quando o suspeito se recuse a falar. Portanto, não devemos confundir os institutos. O direito de não produzir prova contra si mesmo não gera reflexos na condução coercitiva, sendo que o momento para alegá-lo é na presença da autoridade, pois somente depois de atendida a intimação policial, o suspeito na presença da autoridade esclarecerá que deseja utilizar-se desta prerrogativa constitucional.

19. TESTEMUNHA RENITENTE

O artigo 218 do Código de Processo Penal prevê: “Se, regularmente intimada, a testemunha deixar de comparecer sem motivo justificado, o juiz poderá requisitar à autoridade policial a sua apresentação ou determinar seja conduzida por oficial de justiça, que poderá solicitar o auxílio da força pública”.

Em respeito ao princípio da tipicidade legal, surgem vozes na doutrina que a autoridade policial não pode conduzir testemunha coercitivamente, pois o dispositivo na lei processual que regulou a condução coercitiva de testemunha, só citou o juiz. E para os adeptos desta corrente, não há possibilidade de condução coercitiva de testemunha, a autoridade policial simplesmente indica no inquérito o nome das testemunhas ao efetuar o relatório nos termos do artigo 10 §2º CPP, “no relatório poderá a autoridade indicar testemunhas que não tiverem sido inquiridas, mencionando o lugar onde possam ser encontradas”. Uma alternativa, no caso de imprescindibilidade de um depoimento de uma testemunha que se recusasse a comparecer, seria então, nesta concepção, solicitar ao juiz que expeça mandado de condução coercitiva nos termos do artigo 218 do CPP.

Neste sentido, Paulo Rangel:

Qual a providência que deve adotar a autoridade policial quando, no curso do inquérito, desejar ouvir uma testemunha que se recusa a comparecer para ser ouvida? Aplica-se o art. 218 do CPP? Ou seja, pode a autoridade policial conduzir coercitivamente a testemunha utilizando este dispositivo, analogicamente? A resposta negativa se impõe. A uma, porque as regras restritivas de direito não comportam interpretação extensiva nem analógica. A duas, porque a condução coercitiva da testemunha implica a violação seu domicílio, que é proibida pela Constituição Federal. Destarte, deve a autoridade policial representar ao juiz competente, demonstrando o periculum in mora e o fumus boni iuris, a fim de que o juiz conceda a medida cautelar satisfativa preparatória da ação penal. Porém, jamais realizar manu militare a referida condução coercitiva. (RANGEL, 2009. p. 148)

Ousamos discordar dos adeptos deste posicionamento. Primeiro, porque o Estado precisa de instrumentos eficazes para colheita de prova em matéria criminal, sob pena de não atingir seus fins e negar isto, é negar a própria razão de ser do inquérito policial.

Segundo, porque o Código de processo Penal em seu artigo 3º dispõe: “A lei processual penal admitirá interpretação extensiva e aplicação analógica, bem como suplemento dos princípios gerais de direito”. Percebe-se que a situação posta é absolutamente análoga à prevista pelo artigo 218 CPP, sendo que a única diferença é que ali está à autoridade judiciária, motivo pelo qual autorizaria a condução coercitiva de testemunha.

Nota-se que não podia ser diferente, pois quem tem o dever legal de realizar uma atividade deve estar, ainda que implicitamente, dotados de meios necessários a realizá-la. O ordenamento jurídico não pode exigir certos fins dos agentes públicos sem que estes estejam legalmente aparelhados para que o atinjam, razão pela qual, como técnica de hermenêutica, deve-se ter por implicitamente concedidos os poderes necessários para atingir sua finalidade legal. Trata-se aqui de aplicação da Teoria dos Poderes Implícitos, já adotada pelo Supremo Tribunal Federal em outras circunstâncias:

[...] Ora, é princípio basilar da hermenêutica constitucional o dos "poderes implícitos", segundo o qual, quando a Constituição Federal concede os fins, dá os meios. Se a atividade fim - promoção da ação penal pública - foi outorgada ao parquet em foro de privatividade, não se concebe como não lhe oportunizar a colheita de prova para tanto, já que o CPP autoriza que "peças de informação" embasem a denúncia. 8. Cabe ressaltar, que, no presente caso, os delitos descritos na denúncia teriam sido praticados por policiais, o que, também, justifica a colheita dos depoimentos das vítimas pelo Ministério Público. 9. Ante o exposto, denego a ordem de habeas corpus. (HC 91661, Relator(a): Min. ELLEN GRACIE, Segunda Turma, julgado em 10/03/2009, DJe-064 DIVULG 02-04-2009 PUBLIC 03-04-2009 EMENT VOL-02355-02 PP-00279 RMDPPP v. 5, n. 29, 2009, p. 103-109).

Prestar depoimento não é uma faculdade, mas sim um dever do cidadão, podendo o Estado valer-se de seu poder de império sobre os administrados, em prol do interesse público, perante aquele que descumprir o seu dever cívico, não comparecendo sem motivo justificado.

E caso a testemunha esteja acobertada pelas hipóteses do artigo 206 e 207 do CPP recusa e proibição de depor, poderá não atender uma intimação de não comparecimento? Parece-nos que somente depois de informar a autoridade os motivos justificados e esta não tendo qualquer dúvida a respeito de que sua qualidade atinge os requisitos da lei processual, venha dispensar seu depoimento. Caso contrário, deverá ser conduzida coercitivamente, pois somente na presença da autoridade poderá esclarecer os motivos.

20. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os argumentos expostos acima estão em sintonia com a majoritária doutrina e jurisprudência. Ponderamos assim, que é perfeitamente cabível a condução coercitiva pela autoridade policial no curso do inquérito prescindindo de autorização judicial para este ato, pois a reserva de tipicidade legal tutelou especificamente esta hipótese e sendo assim demonstrou-se enfaticamente a constitucionalidade do instituto e a importância do mesmo para atingir os fins da atividade policial.
*Para referências bibliográficas: consulte o autor

terça-feira, 29 de dezembro de 2009

A LEGITIMIDADE DA UTILIZAÇÃO DE ALGEMAS PELOS AGENTES DE ESTADO


ARTIGO DE MINHA AUTORIA - DEZ 2009

Resumo: O presente estudo tem por objeto a abordagem da questão controversa sobre uso de algemas em pessoas conduzidas pelos agentes do Estado. A despeito da temática ora proposta, procurou o autor discorrer sobre os limites que dão legitimidade a utilização de algemas e reagir com argumentos sobre a constitucionalidade e eficácia desta medida para o desempenho das atividades do policial desde que observados certos pressupostos objetivos impostos pela súmula vinculante e sob o aspecto da proporcionalidade. Por fim, enfatizou o perigo do etiquetamento diante da exposição midiática que o instituto pode causar. A exposição se deu de forma clara e objetiva com o intuito de servir como argumento e fonte de pesquisa para o tema. Utilizou-se de recurso de vasta pesquisa bibliográfica, jurisprudencial, artigos e sites afins, sendo levantado um material que trouxe a tona algumas correntes de posicionamento e a que deve prevalecer pelo entendimento do redator deste artigo.

Palavras-chave: Algemas. Legitimidade. Polícia. Prisão.



2 DESENVOLVIMENTO

2.1 ESTADO COMO INSTRUMENTO DE GARANTIAS

O Estado é uma personificação politicamente organizada que se fundamenta em três requisitos – governo, povo e território, cuja a lei máxima se canaliza em uma Constituição. Esta, então, há de ser uma lei do Estado que cuida de suas relações com outros Estados e com a própria sociedade que faz parte do elemento formalizador de sua existência.

O Estado é responsável pela organização e pelo controle social, pois detém, segundo Max Weber, o monopólio legítimo da coerção em prol do interesse público. Assim, é a única fonte do ‘direito’ a violência legítima.

O Estado moderno é uma associação de domínio com carácter institucional que tratou, com êxito, de monopolizar, dentre de um território, a violência física legítima como meio de domínio e que, para esse fim, reuniu todos os meios materiais nas mãos do seu dirigente e expropriou todos os funcionários feudais que anteriormente deles dispunham por direito próprio, substituindo-os pelas suas próprias hierarquias supremas [...] (WEBER, 1979, p. 57 e 49)


Sintetizando o pensamento de Weber, Inocêncio Mártires Coelho faz a seguinte reflexão: “o conceito de violência legítima é a pedra de toque para a compreensão do Estado de Direito como instrumento de racionalização/institucionalização ou, se preferirmos, de legitimação do exercício do poder.” (COELHO et al, 2009, p. 62)

Desse modo, ao Estado cabe a prevenção e repressão dos atos lesivos a sua existência e conservação de forma que ocorrendo uma violência ilegítima, não justificada dentro das regras sociais que são definidas em lei, gerando uma violação que afeta a sociedade, o Estado se vale do direito de intervir e buscar uma pretensão punitiva para restabelecer a ordem social. Nesse contexto, ocorrendo uma infração penal, cabe ao próprio Estado, por meio dos seus órgãos de segurança pública, garantir a observância da lei.

Nestes termos o Tribunal Constitucional alemão se pronunciou (BverfGE 49, 24, p.53-69 – Kontakts-perre-Gesetz) ao afirmar que:

A segurança do Estado como poder constitucional da paz e da ordem e a segurança a ser por ele assegurada ao seu povo são valores constitucionais que estão no mesmo nível de outros e são irrenunciaveis, porque deriva daí a legitimidade e justificação da instituição do Estado. (ARNDT apud BALTAZAR Jr, 2009, p. 195).

2.2 A POLÍCIA

Sabe-se que a Constituição de 1988, dando especial relevância a segurança pública, reservou um capítulo exclusivo para traçar os parâmetros de sua atuação e prevê em seu artigo 144: A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos: polícia federal, polícia ferroviária federal, polícias civis, polícias militares.

Mas o que se entende então por Polícia? Nos ensinamentos de Tourinho Filho:

O vocábulo polícia, do grego politéia – de pólis (cidade) – significou, a princípio, o ordenamento jurídico do Estado, governo da cidade e, até mesmo, a arte de governar. Em Roma, o termo politia adquiriu um sentido todo especial, significando a ação do governo no sentido ‘de manter a ordem pública, a tranquilidade e paz interna’; posteriormente, passou a indicar ‘o próprio órgão estatal incumbido de zelar sobre a segurança dos cidadãos’. Esse o seu sentido atual. (TOURINHO FILHO, 2002, p. 58)

No campo da sociologia encontramos ainda algumas definições conforme compilação de Acácia Maria Maduro Hagen:

Bittner, 2003, p.130): ‘A polícia nada mais é do que um mecanismo de distribuição, na sociedade, de força justificada pela situação’. (Klockars, 1985, p. 12): ‘Polícia são as instituições ou indivíduos que recebem do Estado o direito de usar, em geral, a força coercitiva em seu território’. (Muir, 1977, p.44, tradução da autora) ‘A autoridade policial consiste em uma autorização legal para coagir outros a absterem-se de usar a coerção ilegítima. A sociedade o autoriza a matar, ferir, confinar ou vitimizar de qualquer outra forma os não-policiais que iriam ilegalmente matar, ferir, confinar ou vitimizar de qualquer outra forma aqueles a quem o policial está encarregado de proteger’. (HAGEN apud, 2006, p. 32 – 33)

Conclui-se, que inúmeros são os conceitos sobre polícia, que se unidirecionalizam para um conceito único: instituição estatal, incumbida na preservação da ordem pública, atuando preventivamente ou repressivamente.

Sendo assim, sempre que ocorre um ilícito penal surge a necessidade de atuação da polícia civil e para isso é necessário a utilização de certos meios para que esta atinja seus fins. No cumprimento de diligências, como mandado de prisão, prisões em flagrante, conduções coercitivas torna-se necessário a utilização de um instrumento fundamental na atividade policial: as algemas.

2.3 CONCEITUANDO ALGEMA

A algema é um instrumento utilizado desde a antiguidade e tem como função limitar os movimentos dos membros que estão constrangidos. Sua aplicabilidade pode se dá tanto nos membros superiores (algemas de dedo ou de mãos) como inferiores (algemas de pés) e em tese possui uma tripla função: preservar a segurança do preso; preservar a segurança do policial e assegurar a condução do detido, sem incidentes, à presença da autoridade competente.

Pesquisando sobre a palavra algema e sua origem encontramos raízes proveniente do oriente conforme ensinamentos de Fernando Capez: “algemas é uma palavra originária do idioma arábico, aljamaa, que significa pulseira” (CAPEZ, 2008, p. 252).

Sintetizando ainda o que se entende por algemas temos Paulo Rangel tecendo saudosos comentários sobre o tema:
As algemas são, em regra, instrumentos metálicos que, colocadas no pulso, nos tornozelos ou nos dedos polegares (impedem que o preso com os dedos e um arame possa, por exemplo, abrir as algemas), evitam que o preso possa oferecer resistência, fugir ou atentar contra a vida de alguém, ou quiçá, a sua própria vida. (RANGEL, 2009, p. 644)

2.4 A QUESTÃO DA SÚMULA VINCULANTE

Instrumento essencial na atividade policial, fazendo parte do conjunto mínimo de equipamentos de segurança que um policial deve ter ao exercer suas atividades, as algemas têm sido alvo de duras críticas por diversos segmentos da sociedade, que geraram inclusive repercussões no âmbito do Poder Judiciário de traçar balizas para sua utilização diante da inércia do legislador em regulamentar ou legislar especificamente sobre a matéria utilizando-se de um artifício constitucional denominado Súmula Vinculante.

A Constituição Federal, em seu artigo Art. 103-A, prevê: O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei.

Com a adesão do Supremo Tribunal Federal em agosto de 2008, julgando um caso emblemático sobre o uso de algemas no plenário do tribunal do júri (HC nº. 91952 – Plenário – Rel. Min. Marco Aurélio – j. 07/08/09), houve a edição da súmula vinculante de número 11: só é lícito o uso de algemas em casos de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado.

Diversas críticas foram tecidas diante do modo como a súmula vinculante foi imposta o que já gerou inclusive pedido de cancelamento perante o Supremo Tribunal Federal por desrespeito aos requisitos de formalização do verbete vinculante.

Compilando alguma dessas críticas, citamos Nestor Távora:

Para que se justificasse a emissão da súmula vinculante sobre o uso de algemas, seria preciso que existissem reiteradas decisões sobre matéria constitucional, versando sobre a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas, acerca das quais houvesse controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública que acarretasse grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre a questão idêntica, nos termos do art. 103-A, §1º, da Constituição do Brasil. (TÁVORA, 2009, p. 456)

Neste contexto, a Cobrapol (Confederação Brasileira de Trabalhadores Policiais Civis) entrou com um pedido de cancelamento da súmula vinculante de número 11. A entidade alega que a súmula viola o princípio da isonomia, “ao priorizar o resguardo do direito à imagem frente à liberdade de informação”, negligenciando a segurança dos policiais. Afirma ainda que não há como prever a reação de cada indivíduo e que o STF teria violado o princípio da separação dos Poderes e não observado um dos requisitos para a edição de súmulas, que é a reiteração de decisões da Corte em matéria constitucional.

O Procurador Geral da República no âmbito de sua atribuição encaminhou parecer ao Supremo Tribunal Federal opinando pelo cancelamento sob o argumento de que o STF inovou o ordenamento jurídico, “ultrapassando, como destacou a entidade sindical proponente, os limites constitucionais de sua competência, uma vez que não pode atuar como legislador positivo” (COBRAPOL, 2009)

2.5 ALGEMAS. USO DA FORÇA OU NEUTRALIZAÇÃO DA FORÇA?

No contexto policial, é de rigor o acautelamento para que a diligência seja o menos traumática possível, e a situação de tensão possa ser evitada.

Na doutrina é comum encontrarmos que a utilização de algemas configura nítido emprego de força na ação policial conforme podemos perceber nos ensinamentos de Guilherme de Souza Nucci ao afirmar que: “Algemar alguém configura nítido emprego de força, o que o artigo 284 do CPP veda.” (NUCCI, 2008, p. 580)

Urge ressaltar, que não concordamos com este posicionamento. Trata-se de um equívoco associar a utilização de algemas com o emprego de força. Melhor seria entendê-la como forma de neutralização da força e de imobilização do conduzido para assim garantir a real eficácia das medidas necessárias para o re-estabelecimento da ordem social e “como decorrência do direito à segurança, a existência de uma pretensão ou direito à proteção policial (Recht auf polizeilichen Schutz).” (BALTAZAR Jr., 2009, p. 196)

Neste diapasão que Fernando Capez destaca: “As regras mínimas da ONU para tratamento de prisioneiros, na parte que versa sobre instrumentos de coação estabelecem que o emprego de algema jamais poderá dar-se como medida de punição (n.33)” (CAPEZ, 2008, p. 252).

Percebe-se então fazendo uma interpretação a contrario sensu que a sua utilização não é descartada no âmbito internacional, podendo ser utilizada como meio para atingir o fim da atividade policial, desde que não seja com o intuito de punir e assim empregar das ações necessárias para neutralizar qualquer tipo de força antagônica que poderia ser direcionada aos agentes do Estado ou a sociedade.

Neste sentido que em diligências de conduzidos que possuam alta periculosidade quase sempre será da prática policial a utilização das técnicas de imobilização com algemas (vide anexo II), como forma de anular qualquer tipo de reação e garantir a segurança dos presentes. Assim nos lembra Rogério Greco:

Nas operações em que um grupamento policial especializado é solicitado, a exemplo do que ocorre com o BOPE, a CORE – Coordenadoria de Recursos Especiais (uma unidade especial da Polícia Civil do Rio de Janeiro [...], dificilmente não haverá necessidade do uso de algemas, uma vez que sua participação ocorre, como regra, em situações de alto risco, lidando com facções criminosas que trazem enorme perigo à sociedade, como ocorre com a prisão de membros integrantes do comando vermelho, do terceiro comando, do PCC (Primeiro Comando da Capital) etc. (GRECO, 2009, p. 35)

Embora seja esta a finalidade do instrumento algumas vezes os agentes do Estado poderão fazer uma representação negativa quanto ao uso legítimo dessa neutralização de força, construindo assim, uma representação alternativa que em sua concepção os autoriza ao uso do instrumento para outras finalidades, rompendo o limite entre o lícito e o ilícito. Um dos argumentos para o uso ilegal da força vincula-se ao não reconhecimento do campo jurídico como instância adequada à resolução de todos os conflitos na atividade policial. Desta maneira, o sistema legal é visto como inadequado o que leva a ação segundo os critérios particularistas de justiça adotados pelos próprios agentes do Estado resultando na maioria das vezes em abuso de poder.

Este abuso de poder se transforma na materialização de um crime inflamado pelo diploma legal de número 4898/65 que em seu artigo 4.º prevê: constitui também abuso de autoridade: a) ordenar ou executar medida privativa da liberdade individual, sem as formalidades legais ou com abuso de poder; b) submeter pessoa sob sua guarda ou custódia a vexame ou a constrangimento não autorizado em lei.

Neste contexto que Acácia Maria Maduro Hagen, com razão, destaca: “Quando policiais, seja qual for a corporação, assumem uma posição de negação do Direito, também estão questionando, mesmo que inconscientemente, seu direito ao uso da violência física legítima.” (HAGEN, 2006, p. 251)

2.6 ISONOMIA NO TRATAMENTO DADO AO CONDUZIDO DIANTE DA DISCRICIONARIEDADE DO AGENTE DO ESTADO


É uma tendência no contexto das polícias internacionais considerar o uso de algemas um procedimento obrigatório em todos os casos, independente da posição social, do porte físico, ou do local e circunstâncias da prisão. Ao estabelecer essa imperatividade como regra evita-se a discricionariedade do policial sobre o tratamento dado aos conduzidos, tratando de forma isonômica todos aqueles que com autorização judicial ou em flagrante delito são detidos.

Neste sentido, discorrendo sobre Constituição e regime de liberdades, podemos extrair uma importante lição onde o juiz Fausto Martin De Santis destaca:

No campo da restrição de direitos fundamentais (notadamente a liberdade), cabe, outrossim, a conjugação de outro preceito de idêntico valor: o da igualdade. [...] Em outras palavras, diferenciação injustificada de tratamento, sentimento reiteradamente experimentado e propalado quanto à alegada desigualdade de repressão penal, notadamente presente na consciência do cidadão comum de que a injustiça é mais aguda e a justiça mais severa para as classes mais desfavorecidas (preconceito de classes), não se pode admitir. (SANTIS, 2009, p. 96)

No Brasil a mesma concepção deveria ser empregada com o tratamento igualitário na utilização de instrumentos necessários a satisfação da atividade fim, ainda que de forma reflexa. Com isso, justifica-se o uso de algemas de forma legitima com tratamento igualitário para todos nos termos do artigo 5º, I da Constituição Federal, desde que seu efetivo uso seja necessário.

Já decidiu inclusive o Superior Tribunal de Justiça à autorização do emprego de algemas contra réu juiz de direito, quando demonstrada a necessidade. (STJ, 5ª T., HC 35540, rel. Min. José Arnaldo, j. 5-8-2005).

Porém, urge ressaltar, que nosso contexto por ausência de regulamentação e orientado pela súmula vinculante de número 11, restou ao agente do Estado o exercício da discricionariedade objetiva (neste caso seus parâmetros são de certa forma delineados pelo verbete), diferentemente do que ocorre na maioria dos demais países. Entretanto, a quem ficaria avaliar esta margem de discricionariedade na necessidade de utilização de algemas? Parece-nos que neste sentido a melhor lição é a de Paulo Rangel:

[...] Quem exercerá esta discricionariedade para decidir quando há perigo de fuga ou de agressão por parte do preso? Como adivinhar o que o preso está pensando? É óbvio que só há um profissional com experiência em segurança para fazer essa análise: o policial. É o policial, uma vez solicitado, quem deve dizer ao magistrado quando da audiência, que as algemas, no caso concreto, podem ser retiradas do preso por não oferecer ele nenhum perigo à prática do ato. (RANGEL, 2009, p. 645)

Espera-se que a súmula vinculante não restrinja o uso de algemas somente para os pobres e crie mais uma espécie de segregação em nosso sistema penal. Nesta interpretação, sob os possíveis efeitos da súmula vinculante, Rogério Greco citando Paulo Rangel nos lembra: “Algema e ‘camburão’ são para pobre, não para Colarinho-Branco” (RANGEL, apud GRECO, 2009, p. 36)

2.7 QUESTÃO DA REGULAMENTAÇÃO DO USO DE ALGEMAS


No Brasil há um vácuo legislativo sobre o assunto. A regulamentação do emprego de algemas, segundo o art. 199 da Lei nº 7.210 , de 11 de julho de 1984 (Lei de Execução Penal), deve ser feita por meio de decreto presidencial (art. 84 , IV , da Constituição Federal).

Todavia, após vinte anos da publicação da LEP o Poder Executivo não cumpriu com seu desiderato. O Código de Processo Penal, em seu artigo 284, embora não trate especificamente da palavra algema, dispõe de forma genérica que “não será permitido o uso da força, salvo a indispensável no caso de resistência ou de tentativa de fuga do preso”. Temos ai à legitimidade para seu uso nos termos da legislação processual penal, malgrado ausente sua regulamentação específica por uma lei, embora haja projetos neste sentido. Vejamos: projeto de lei do Senado Federal nº 185, de 2004.

Art. 1º Esta lei regulamenta o emprego de algemas em todo o território nacional. Art. 2º As algemas somente poderão ser empregadas nos seguintes casos: I - durante o deslocamento do preso, quando oferecer resistência ou houver fundado receio de tentativa de fuga; II - quando o preso em flagrante delito oferecer resistência ou tentar fugir; III – durante audiência perante autoridade judiciária ou administrativa, se houver fundado receio, com base em elementos concretos demonstrativos da periculosidade do preso, de que possa perturbar a ordem dos trabalhos, tentar fugir ou ameaçar a segurança e a integridade física dos presentes; IV - em circunstâncias excepcionais, quando julgado indispensável pela autoridade competente; V -quando não houver outros meios idôneos para atingir o fim a que se destinam. Art. 3º E expressamente vedado o emprego de algemas: I - como forma de sanção; II - quando o investigado ou acusado, espontaneamente, se apresentar á autoridade administrativa ou judiciária. Art. 4º Os órgãos policiais e judiciários manterão livro especial para o registro das situações em que tenham sido empregadas algemas, com a indicação do motivo, lavrando-se o termo respectivo, que será assinado pela autoridade competente e juntado aos autos do inquérito policial ou do processo judicial, conforme o caso. Art. 5º Qualquer autoridade que tomar conhecimento de abuso ou irregularidade no emprego de algemas levará o fato ao conhecimento do Ministério Público, remetendo-lhe os documentos e provas de que dispuser, necessários à apuração da responsabilidade penal. Art. 6º Esta lei entrará em vigor na data de sua publicação. (SENADO FEDERAL, 2004)


2.8 PRINCÍPIO DA TIPICIDADE LEGAL NAS AÇÕES POLICIAIS

Toda medida tomada pela polícia deve se revestir de previsão legal (lato sensu) para tanto, e para isso o ordenamento jurídico sobre a sua sistemática de interpretação buscou ressalvar meios para legitimar a utilização de algemas em face da deficiente regulamentação específica para o tema. Previsões como o art. 199 da Lei nº 7.210/84, art. 284 Código de Processo Penal, Súmula Vinculante n.º 11, Portaria Conjunta nº 01, de 09 de março de 2009 (padroniza os procedimentos para utilização de algemas no âmbito dos órgãos que compõem o Sistema de Segurança Pública do Distrito Federal – vide anexo I) são exemplos de balizas legais que legitimam a utilização de algemas. Para entendermos a relevância do princípio da tipicidade legal nas ações policiais, vejamos análise de Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery:

A tipicidade das medidas de polícia acarreta limitação da atuação da polícia. Isto, porque, em caso de necessidade de ação policial, por exigência constitucional, diante de um particular, a polícia apenas poderá incidir na esfera do particular mediante atuação previamente fixada em lei. A atuação policial tem seus limites na Constituição e também na legislação que regulamentar sua atividade, ou seja, somente podem ser adotadas as medidas policiais legalmente permitidas e não aquelas que a autoridade policial, subjetivamente e sem respaldo legal objetivo, considerar convenientes para o deslinde de determinado caso concreto. [...] O princípio da tipicidade legal das medidas policiais indica que os atos policiais, além de, necessariamente, possuírem seu fundamento na lei, as medidas e os procedimentos devem ter seu conteúdo suficientemente definido em lei, independentemente de quais forem essas medidas: que sejam regulamentos gerais oriundos das autoridades de polícia, decisões concretas e particulares (autorização, proibições e ordens), medidas de coerção (utilização da força, emprego de armas) ou operações de vigilância (Canotilho-Moreira. Const. Anot³., coment. 272, n. VI, p. 956)”.
O Tribunal Constitucional Português, pelo acórdão 479/94, consagrou a aplicação dos princípios da proibição de excesso e da tipicidade da atividade policial. Nesse sentido, decidiu: ‘os fins dos poderes funcionais assim atribuídos à polícia terão de ser actuados através de medidas previstas na lei (princípio da tipicidade legal), sendo que, por força da regra de correlação existente entre os meios e os fins, as medidas de polícia não devem ser utilizadas para alem do estritamente necessário (princípio da proibição do excesso). O princípio da tipicidade legal impõe que os actos de polícia, além de terem um fundamento legal, devem traduzir-se em procedimentos individualizados e com conteúdo suficientemente definido na lei seja qual for a sua natureza (...) (Tribunal Constitucional Português, Pleno, Processo n. 208/94, rel. Cons. Monteiro Diniz., acórdão n. 479/94). (NERY, 2009. p. 606)


2.9 PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE E SUA OBSERVÂNCIA NO USO DAS ALGEMAS

É evidente que a proporcionalidade, na ótica policial se traduz no bom-senso, é da essência de todo ato, devendo estar devidamente justificada o emprego da utilização de algemas. Por exemplo, desproporcional é a utilização de algemas em um idoso enfermo que concorda pacificamente em ser conduzido à delegacia. Dessa maneira, sem o sopesamento do princípio da proporcionalidade os direitos fundamentais ficam desamparados contra possíveis e eventuais excessos (Übermaβverbot – princípio da vedação de excesso) perpetrados com o preenchimento das lacunas pela Constituição ao legislador para atuar no domínio das reservas da lei. Destrinchando o princípio da proporcionalidade Denilson Feitoza ressalta:

De modo geral, as doutrinas estrangeiras e nacional têm firmado o princípio da proporcionalidade em sentido amplo (Der Grundsatz der Verhältnismäβigkeit im weiteren Sinne) como subdividido em subprincípios: princípio da adequação ou da idoneidade (Geeignetheit ou idoneità del provvedimento), princípio da necessidade (Erforderlichkeit ou necessita del provvedimento) e princípio da proporcionalidade em sentido estrito (Der Grundsatz der Verhältnismäβigkeit im engeren Sinne ou proporzionalità). (FEITOZA, 2009, p. 135)

Continua o autor discorrendo sobre os subprincípios da proporcionalidade, respectivamente na ordem como foram ilustradas acima:

De acordo com este subprincípio, toda intervenção nos direitos fundamentais deve ser adequada para contribuir à obtenção de fim constitucionalmente legitimo. [...] Impõe duas exigências a todas as intervenções em direitos fundamentais: a) a existência de um fim constitucionalmente legítimo; b) adequação ou idoneidade da medida (ou meio) para favorecer a obtenção desse fim. [...] O princípio da necessidade é também conhecido como princípio da ‘intervenção mínima’, do ‘meio mais brando/suave/benigno/mitigado/moderado’, da ‘menor intervenção possível’, da ‘exigibilidade’, da ‘subsidiariedade’ ou do ‘meio mais moderado’. [...] Conforme o princípio da proporcionalidade em sentido estrito, a importância da intervenção no direito fundamental deve estar justificada pela importância da realização do fim perseguido pela intervenção legislativa. (FEITOZA, 2009, p. 137 - 139)

Sendo assim, talvez o pressuposto mais importante que fundamenta a utilização do uso de algemas pelos órgãos policiais seja a proporcionalidade da medida. Conforme ressalta Denilson Feitoza, para se ter como uma medida legitima é necessária que seja proporcional e com isso requisitos como adequação, necessidade e proporcionalidade strito sensu devem ser observados para que assim o Estado atue de forma amparada pelo ordenamento constitucional dentro de uma persecução penal volta para as garantias do cidadão e efetividade de resultados.

2.10 MOTIVAÇÃO DO IMPERATIVO DE NECESSIDADE. UMA NOVA VERTENTE

Outro aspecto a ser abordado é que a súmula vinculante de nº. 11 prevê expressamente que a utilização de algemas deve ser motivada por escrito. Dessa forma, a necessidade de justificação passa a ser da essência do ato. Entretanto, nada obsta, que o agente da autoridade se utilize do recurso das algemas sempre que entender necessário, desde que haja esta fundamentação. É certo que existe um grau de subjetividade nas circunstâncias que podem ser interpretadas quanto à necessidade, ou sua dispensa. Portanto, como pressuposto de legitimação do ato de algemar, basta justificar a medida.

Embora seja a fundamentação um pressuposto do ato de algemar com base no verbete vinculante do Supremo Tribunal Federal os efeitos da nulidade devem ser analisados sobre dois prismas, conforme ensinamentos de Nestor Távora:

O ato processo praticado com o uso arbitrário das algemas será reputado nulo, além da ilegalidade da prisão efetivada [...] a sanção de nulidade [...] terá cabimento quando [...] potencializa o prejuízo. [...] Existem outros atos, entretanto, em que não há prejuízo e portanto a nulidade estará descartada, como a condução para a realização de corpo de delito, para o incidente de insanidade mental, para tratamento médico, dentre outros. Restará a sanção do responsável pelo arbítrio. (TÁVORA, 2009, p. 459).

2.11 ESTIGMATIZAÇÃO SOCIAL PELA EXPOSIÇÃO PÚBLICA DERIVADA DO USO INDEVIDO DE ALGEMAS

A persecução penal em geral traz um ônus para aqueles que a suportam. Principalmente no contexto atual em que os sistemas de comunicação globalizam as informações de forma irradiante e praticamente instantânea.

No aspecto de realização de operações policiais, existe uma grande polêmica no ato de algemar o preso na presença da mídia televisiva, muitas vezes para dar repercussão e promoção a equipe de investigação dentro da própria instituição. Esse tipo de enquadramento traz uma estigmatização social do conduzido. Esse fenômeno é também conhecido como perp walk, "desfile do acusado".

O perp walk pode ser uma falta de preocupação intencional pela privacidade de um suspeito, com o propósito de promover a imagem da instituição policial, humilhar o suspeito, ou ambos. Geralmente praticado contra indivíduos de alta penetração na mídia, como políticos acusados de corrupção e banqueiros cuja reputação é suscetível a danos pela exposição pública. Trata-se de um termo que se refere à prática policial de expor, intencionalmente, o acusado preso de forma sensacionalista em local público, algemado ou imobilizado de alguma forma, de modo que a mídia possa observar, gravar e divulgar o evento causando um estigma na sua reputação.

Mas o que poderíamos entender como estigma? O termo estigmatizar nas lições de Aury Lopes Junior: “encontra sua origem etimológica no latim stigma, que alude à marca feita com ferro candente, o sinal da infâmia, que foi, com a evolução da humanidade, sendo substituída por diferentes instrumentos de marcação”. (LOPES Jr., 2006, p. 60)

Essa estigmatização se funde com o próprio conceito do ‘labeling approach’ dos estudos criminológicos. Trata-se de uma atividade de etiquetamento que sofre a pessoa ao ser exposto de forma midiática representando a retirada da identidade de uma pessoa e a outorga de outra pela sociedade. Vejamos a seguinte compilação de Aury Lopes Junior:

O labeling approach, como perspectiva criminológica, entende que o self – a identidade – não é um dado, uma estrutura sobre a qual atuam as ‘causas’ endógenas ou exógenas, mas algo que se vai adquirindo e modelando ao longo do processo de interação entre o sujeito e os demais. (LOPES Jr., 2006, p.60)

Nesse panorama, a utilização indevida de algemas pode gerar a retirada da identidade de uma pessoa e a outorga de outra sendo uma clara atividade de etiquetamento. Dessa maneira, que a presunção de inocência, deveria ser o mais importante instrumento de proteção contra a estigmatização, de modo que, quanto maior a efetividade do princípio, menor o prejuízo para o indivíduo.

A presunção de inocência conforme ressalta o jurista André Nicolitt traz a baila três dimensões que tem papel de dar efetividade ao princípio constitucional. Uma delas é a de regra de tratamento. Assim, embora recaiam sobre o imputado suspeitas de prática criminosa, deve ele ser tratado como inocente, não podendo ver-se diminuído social, moral nem fisicamente diante de outros cidadãos. Nestes termos que o jurista defende:

Esta dimensão atua sobre a exposição pública do imputado, sobre sua liberdade individual, funcionando, neste último caso, precisamente, como limite às restrições de liberdade do acusado antes do trânsito em julgado, evitando a antecipação da pena. (NICOLITT, 2009, p. 58)

Portanto, a exposição de um conduzido com algemas deve ocorrer somente diante da necessidade, isto porque, presume-se até então a inocência do investigado nos termos da Constituição da República que deve ter sua imagem preservada. A imputação de um crime não deve gerar por si só a exclusão social do individuo, até porque uma das finalidades da pena é justamente a reinserção social do criminoso que uma vez estigmatizado encontra dificuldades neste amparo.

Não se trata de defender a não utilização de algemas, pelo contrário, trata-se de dar legitimidade ao seu uso para que este instrumento do dia a dia policial não seja meio de humilhação ao ser humano, contrariando assim a Constituição Federal que ordena o respeito à integridade física e moral dos presos, proibindo submeter alguém a tratamento desumano e degradante, devendo ser preservada, também, a dignidade da pessoa humana princípio matriz e fundamento do Estado Democrático de Direito. Infelizmente, até pela falta de regulamentação e padronização interna, esse limite entre uso e abuso se torna muito tênue motivo pelo qual requer atenção especial do agente do Estado para que não seja depois vítima de perseguição pelos órgãos corregedores e de controle da atividade policial.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os argumentos expostos neste trabalho estão em sintonia com o que deve ser levado em consideração para o uso legítimo das ações que envolverem a utilização de algemas. No contexto do que foi apresentado buscou-se efetivar a consolidação da opinião do autor com autorizada doutrina sobre o tema e embasamento jurisprudencial. Ponderamos assim, que é perfeitamente cabível a utilização de algemas pelos agentes do Estado no curso de suas ações devendo atender aos pressupostos necessários e principalmente a proporcionalidade da medida para que só assim haja o respaldo constitucional como subsídio para atingir os fins da atividade policial.

Nota-se que é importante novamente destacar que a utilização de algemas como procedimento cautelar deve se realizar somente quando estritamente necessário para que assim cumpra um de seus objetivos: preservar a segurança do preso; preservar a segurança do policial e sua integridade, e por fim, assegurar a condução do detido, sem incidentes, à presença da autoridade competente. Salienta-se que além dos pressupostos objetivos deve-se observar os subjetivos que estarão a margem da ‘autoridade’ responsável pela condução do detido por meio de uma certa dose de discricionariedade e sempre tendo como limites a esta discricionariedade o princípio da proporcionalidade que irá sopesar os interesses entre direito a segurança e direito a imagem/liberdade impondo assim um freio nas ações policiais através do princípio da vedação de excesso (Übermaβverbot).

Por fim, preocupou-se o autor em enfatizar que o instrumento de segurança do cotidiano policial não pode ser usado como uma representação negativa de uso da força e exposição dos conduzidos, o que pode gerar dano irreparável a sua reputação e assim a ocorrência do fenômeno do labeling approach com sua conseqüente estigmatização, isto porque, estamos diante de uma atividade persecutória que se deve presumir até o trânsito em julgado de uma condenação a presunção de inocência do indivíduo que muitas vezes pode ser alvo de meios de coerção sem que este seja efetivamente incluído em um processo criminal. Diante de todos os argumentos, destacou-se a legitimidade do uso de algemas pelos agentes do Estado e principalmente pela Polícia Civil, órgão de atuação repressora no combate a criminalidade.


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